Os privados que comprem a cultura!<br> (o belo negócio do mecenato)

Jorge Feliciano

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No es­paço de dois anos, duas re­por­ta­gens de algum fô­lego sobre cul­tura e eco­nomia (duas pa­la­vras cada vez mais vistas juntas, co­la­di­nhas uma à outra) pu­bli­cadas no jornal Pú­blico es­pe­lham bem o pro­cesso de mer­can­ti­li­zação em curso da cul­tura. Ambas as re­por­ta­gens são as­si­nadas por Ale­xandra Prado Co­elho.

A pri­meira é de 24 de Março de 2010. O Pú­blico no­ti­ciava com honras de pri­meira pá­gina a apre­sen­tação do es­tudo O Sector Cul­tural e Cri­a­tivo em Por­tugal, uma en­co­menda do Mi­nis­tério da Cul­tura à em­presa Au­gusto Ma­teus & As­so­ci­ados.

O tí­tulo gar­rafal dando o mote à re­por­tagem era uma per­gunta:

«A cul­tura pode salvar a eco­nomia?»

Logo na al­tura, dado o con­teúdo e con­clu­sões do es­tudo li­de­rado pelo fa­mi­ge­rado mi­nistro da Eco­nomia do PS de Gu­terres, pa­receu ser mais per­ti­nente a se­guinte for­mu­lação:

«A cul­tura pode salvar o ca­pi­ta­lismo?»

 

Mer­can­ti­li­zação e repto à «classe cri­a­tiva»

 

De facto o mis­ti­fi­cador es­tudo de con­clu­sões pre­de­fi­nidas en­co­men­dado pelo Mi­nis­tério da Cul­tura por­tu­guês (à se­me­lhança de ou­tros es­tudos de igual ín­dole feitos nos Es­tados Unidos, vá­rios países eu­ro­peus e pela UNESCO) in­dica o ca­minho para uma po­lí­tica ra­dical de mer­can­ti­li­zação das artes e da cul­tura, par­tindo de uma per­cepção dos países ca­pi­ta­listas ditos avan­çados de que é ine­vi­tável (e até sau­dável) que as suas eco­no­mias se cen­trem cada vez mais no sector dos ser­viços, sendo que a cul­tura e a cri­a­ti­vi­dade se­riam os «in­puts» de­ter­mi­nantes que lhes per­mi­tiria ga­nhar à con­cor­rência, isto é, às eco­no­mias emer­gentes. A cul­tura e a cri­a­ti­vi­dade como elos sal­va­dores de um ca­pi­ta­lismo em agonia.

Para que este ob­jec­tivo seja con­cre­ti­zável é, para o ca­pi­ta­lismo, ur­gente mo­bi­lizar aqueles que os gurus das in­dús­trias cul­tu­rais e cri­a­tivas de­signam de «classe cri­a­tiva» que, se­gundo eles, será no fu­turo a classe de­ter­mi­nante do pro­cesso pro­du­tivo, subs­ti­tuindo assim os pro­du­tores eles pró­prios, isto é, a classe ope­rária.

No âmago deste ab­surdo dis­cur­sivo, de in­versão da re­a­li­dade, além da pre­tensão de en­con­trar mais uma bóia tem­po­rária de sal­vação, está a ne­ces­si­dade (in­trín­seca, ela pró­pria, à sua sempre tem­po­rária sal­vação) do ca­pi­ta­lismo apro­fundar o ca­rácter fe­ti­chista das mer­ca­do­rias as­si­na­lado por Marx. Para isso, há que ga­nhar os «cri­a­tivos» (novo nome, nova forma de en­vai­decer ar­tistas, cri­a­dores e de­mais in­te­lec­tuais), pro­movê-los até como classe de­ter­mi­nante do fu­turo.

 

A compra da cul­tura

 

Dois anos de­pois, outra vez a cul­tura e a eco­nomia no Pú­blico com o tí­tulo «Os pri­vados que pa­guem a cul­tura». Assim de re­pente, até um dis­traído es­quer­dista, acor­dado no co­ração de Paris em pleno Maio de 68, po­deria con­cordar e gritar de peito cheio «Nem mais! Os pri­vados que pa­guem a cul­tura!».

Porém, o tí­tulo está outra vez des­fa­sado de um con­teúdo que dá conta de uma falsa al­ter­na­tiva. Essa al­ter­na­tiva seria os agentes cul­tu­rais vi­rarem-se para quem tem di­nheiro, as em­presas, já que grande parte dos go­vernos dos países eu­ro­peus está, a pre­texto da crise, a cortar «dra­ma­ti­ca­mente» na cul­tura.

Esta é a falsa al­ter­na­tiva apre­sen­tada pelos mer­can­ti­listas da cul­tura que, pelos vistos, estão bem or­ga­ni­zados na pro­moção de eventos como aquele que é as­sunto da re­por­tagem do Pú­blico (4/​02/​2012): o «Pú­blica 12 – En­con­tros Pro­fis­si­o­nais de Gestão Cul­tural», uma ini­ci­a­tiva do Cír­culo de Belas-Artes de Ma­drid.

Neste en­contro, e em par­ti­cular no painel «Por que é que uma marca pa­tro­cina a cul­tura?» jor­raram, apa­ren­te­mente, rios de lá­grimas dos olhos dos vá­rios res­pon­sá­veis em­pre­sa­riais afir­mando que os agentes cul­tu­rais são in­justos, que apenas querem o di­nheiro mas de­pois estão-se ma­rim­bando para a marca, que co­locam lo­gó­tipos muitos pe­quenos nos car­tazes, que nem se­quer con­vidam os pa­tro­ci­na­dores para as es­treias e inau­gu­ra­ções, enfim, uns in­te­res­seiros os agentes cul­tu­rais, não dão a atenção de­vida e me­re­cida a quem lhes dá ou pode vir a dar o sus­tento.

De­pois vão dando li­ções. As pró­prias em­presas, apai­xo­nadas que são pelas artes e pela cul­tura, en­sinam como devem ser con­ven­cidas pelos agentes cul­tu­rais.

É fácil: pri­meiro «en­quanto não existir (da parte dos ar­tistas) uma di­gestão da marca, não há co­la­bo­ração». Quanto ao risco das marcas in­ter­fe­rirem nos con­teúdos a res­posta é ex­ci­tante: «isso faz parte do pro­cesso de co­nhe­ci­mento mútuo» e o que pode ser «ex­tre­ma­mente va­lioso é um jantar para de­finir es­tra­té­gias». É também muito im­por­tante «co­nhecer bem a em­presa. O su­cesso da an­ga­ri­ação de pa­tro­cí­nios tem a ver com o cru­za­mento dos ob­jec­tivos da em­presa e do grupo», até porque «o di­nheiro segue, mais do que qual­quer outra coisa, as boas ideias.»

Como se pode ver, é todo um mundo novo, este da an­ga­ri­ação de pa­tro­cí­nios pri­vados para a cul­tura.

Porém, o co­men­tário mais es­cla­re­cedor em re­lação ao que está em causa vem de um se­nhor cha­mado Al­berto Fesser que, fi­cámos a saber, é Di­rector da Fun­dação Con­tem­po­rânea. Diz ele: «agora está toda a gente à es­pera, como de uma fór­mula má­gica, que o go­verno aprove a nova lei do me­ce­nato, que tor­nará mais in­te­res­sante para as em­presas pa­tro­ci­narem ac­ti­vi­dades cul­tu­rais que possam con­tri­buir para os ob­jec­tivos que elas têm. (…) O sector cul­tural tem de fazer uma au­to­crí­tica», ou seja, pensar bem na­quilo que pode dar em troca.

Como se pode ver, os em­pre­sá­rios in­te­res­sados no filão cul­tural (e não são poucos), no «input» cul­tural e cri­a­tivo nos seus ne­gó­cios, sentem-se com­ple­ta­mente à von­tade em expor os seus an­seios agora que, um pouco por todo o lado, a de­mo­cracia está posta em causa e com ela a cul­tura en­quanto pilar da pró­pria de­mo­cracia.

 

Me­ce­nato ou uso pri­vado de di­nheiros pú­blicos


No âm­bito desta es­tra­tégia mer­can­ti­lista, e também em Por­tugal, novas leis do me­ce­nato irão ser apre­sen­tadas como a grande e mais eficaz al­ter­na­tiva ao fi­nan­ci­a­mento da cul­tura pelo Es­tado. Serão pro­va­vel­mente apre­sen­tadas como a mais re­cente e ma­ra­vi­lhosa vi­tória da de­mo­cracia que irá ga­rantir fi­nal­mente a ver­da­deira in­de­pen­dência dos agentes cul­tu­rais.

Por isso im­porta an­te­cipar o de­bate e per­guntar, antes de mais, qual é a bri­lhante fór­mula do me­ce­nato?

A res­posta é sim­ples – o Es­tado con­cede be­ne­fí­cios fis­cais às em­presas que pa­tro­cinem a cul­tura. Nuns casos, as em­presas apenas têm be­ne­fí­cios fis­cais se apoi­arem os pro­jectos cul­tu­rais que o Es­tado atesta como sendo vá­lidos. Nou­tros casos esse re­gime é to­tal­mente, ou quase to­tal­mente, li­be­ra­li­zado, isto é, aos pri­vados são con­ce­didos be­ne­fí­cios fis­cais quando apoiam qual­quer «coisa» cul­tural que lhes for útil do ponto de vista co­mer­cial.

A pri­meira fór­mula, ac­tu­al­mente em vigor em Por­tugal, é pouco in­te­res­sante para os pri­vados porque só podem fazer ne­gócio onde o Es­tado deixa. O se­gundo caso, bas­tante atrac­tivo para os pri­vados, é prá­tica no Brasil, Es­tados Unidos, etc., e a ten­dência é que esta venha a ser a fór­mula do­mi­nante.

Porém, a grande questão po­lí­tica sempre es­con­dida quando se fala de me­ce­nato é a se­guinte: o Es­tado priva-se de fi­nan­ciar a cul­tura de forma a ga­rantir a abran­gência da li­ber­dade de cri­ação e fruição ar­tís­tica e cul­tural. No en­tanto con­cede be­ne­fí­cios fis­cais aos pri­vados que a fi­nan­ciem.

Aqui che­gados, é im­por­tante dizer que be­ne­fí­cios fis­cais já têm as grandes em­presas e muitos. Todos sabem, qual­quer comum mortal ou pe­quena em­presa têm uma fac­tura fiscal pro­por­ci­o­nal­mente bem mais pe­sada do que qual­quer grande em­presa.

Quer dizer por­tanto que, pela via dos be­ne­fí­cios fis­cais, o Es­tado propõe-se a fi­nan­ciar os pri­vados para que estes fi­nan­ciem a cul­tura e desta forma pas­sarem a ser eles os agentes de­ter­mi­nantes na de­fi­nição das po­lí­ticas cul­tu­rais.

Por isso per­gun­tamos? E porque não o in­verso? Porque não co­locar os pri­vados a con­tri­buírem mais para o Es­tado para este fi­nan­ciar a cul­tura se­gundo uma ló­gica de ser­viço pú­blico e de apro­fun­da­mento da de­mo­cracia? Porque não cobra o Es­tado mais im­postos às grandes em­presas de modo a ga­rantir o cum­pri­mento das suas obri­ga­ções também na área da cul­tura?

São op­ções destas que co­locam as po­lí­ticas mer­can­ti­listas da cul­tura, em tudo con­trá­rias aos in­te­resses do povo e do País, no campo oposto da luta por uma ver­da­deira po­lí­tica al­ter­na­tiva também para a cul­tura. Entre a po­lí­tica de mer­can­ti­li­zação da cul­tura e uma po­lí­tica al­ter­na­tiva que ga­ranta a de­mo­cracia cul­tural existe um fosso in­trans­po­nível de in­te­resses não har­mo­ni­zá­veis.

É ur­gente re­flectir, não cair em en­godos, tomar po­sição e partir para a luta. O de­sin­ves­ti­mento do Es­tado e con­se­quente li­mi­tação da li­ber­dade de cri­ação e fruição cul­tural pela via da as­fixia fi­nan­ceira não en­contra al­ter­na­tiva na su­jeição da cul­tura aos in­te­resses pri­vados das em­presas.

De­sin­ves­ti­mento dos es­tados na cul­tura e su­jeição da cul­tura ao mer­cado são nada mais que as duas ver­tentes com­ple­men­tares do ataque mer­can­ti­lista à de­mo­cracia cul­tural e à li­ber­dade de cri­ação e fruição cul­tural e ar­tís­tica dos povos.

A ver­da­deira al­ter­na­tiva afirma-se na luta por uma de­mo­cracia cul­tural que ga­ranta o livre acesso de todos à cri­ação e fruição ar­tís­tica e cul­tural numa ló­gica de Ser­viço Pú­blico.



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